Sunday, May 10, 2009

Anos mais tarde regresso. Regresso como a uma casa abandonada, cheia de pó e teias, cheia de ideias secas, ressequidas pelo tempo. Devagar ponho a chave à porta. Hesito. Receio. O coração bate ininterruptamente. Um calafrio percorre todo o meu corpo fazendo-o tremer. Respiro fundo, fechando os olhos lentamente, tão lentamente que até as pálpebras me pesam e insistem em se fechar para sempre. E assim me deixo ficar, parecendo uma eternidade. Até que de repente um pássaro me acorda com o seu canto. Abro os olhos num ápice e olhamo-nos, olhos nos olhos, numa fracção de segundo que se estende pelo mundo inteiro, tornando-nos cúmplices para sempre. Naquele momento toda eu sou pássaro. Nem uma palavra consigo mais soltar. Só o canto me preenche e faz sentir-me eu. O pássaro ficou mais um pouco, como que pedindo-me para o ler, para o ver, para o perceber para lá de tudo. E naquele silêncio, eu só consigo chorar, chorar, chorar. Porque o amor simplesmente acontece. O amor não escolhe o momento, nem a idade nem se é pessoa ou animal. Então o pássaro aproxima-se ainda mais, voando até mim. Primeiro pousa no meu ombro, mas depois percorre-me, rodeia-me, de alto a baixo, esvoaçando-me, criando brisa no meu rosto, fazendo os meus cabelos levantar levemente ao ritmo do seu bater de asas. E aí percebo a sua intenção: aquele pássaro queria ouvir o meu riso, escutar a minha voz e dizer-me que apesar de ter de regressar ao seu ninho, a minha casa era a sua casa. E antes de partir, deixou-me a promessa de regressar.
Inerte, completamente bloqueada mas totalmente preenchida de sentido e de amor, vi-o partir. Ainda fiquei a olhar a paisagem, à sua procura. E aos poucos fui respirando de novo, mas o ar já não era o mesmo. Nunca tinha respirado daquela maneira: no instante em que me cruzei com aquele pássaro, o ar era puro como a bomba para um asmático num momento de crise. Voltei a respirar. Fundo. Uma respiração com esforço, com um esforço sobre-humano como que obrigando os meus pulmões a abrirem-se e a aceitarem aquela sua nova condição de estilhaçamento. Foi um respirar repleto de dor, como que respirando ácido, como que perfurando cada milímetro dos meus pulmões, rasgando violentamente a pleura e queimando os alvéolos.
Virei-me. Encarei de novo a porta. É agora, pensei. É agora, repeti. É agora, convenci-me. É agora, obriguei-me. É agora, menti-me. É agora, morri-me. É agora, porque nunca o será de facto.

2 comments:

blank said...

para o caminho:

since feeling is first
who pays any attention
to the syntax of things
will never wholly kiss you;
wholly to be a fool
while Spring is in the world

my blood approves,
and kisses are a better fate
than wisdom
lady i swear by all flowers. Don't cry
—the best gesture of my brain is less than
your eyelids' flutter which says

we are for each other: then
laugh, leaning back in my arms
for life's not a paragraph

And death i think is no parenthesis

(e.e.cummings)

Catarina Pombo Nabais said...

my sweet old etcetera
aunt lucy during the recent

war could and what
is more did tell you just
what everybody was fighting

for,
my sister

isabel created hundreds
(and
hundreds)of socks not to
mention shirts fleaproof earwarmers

etcetera wristers etcetera, my
mother hoped that

i would die etcetera
bravely of course my father used
to become hoarse talking about how it was
a privilege and if only he
could meanwhile my

self etcetera lay quietly
in the deep mud et

cetera
(dreaming,
et
cetera, of
Your smile
eyes knees and of your Etcetera)

E.E.Cummings