O que é que faz com que uma determinada realidade, com uma determinada relação de forças harmoniosas, se desmorone e entre em ruptura? O que é que provoca o caos? (Claro, deveríamos antes perguntar: como é possível a harmonia?) O que é que provoca, em determinado momento, o ponto de ruptura, a catástrofe?
Estas são as questões que me surgem ao ter conhecimento do que se passa em França e se alastra já pela Alemanha e Bélgica. E a questão fundamental é mesmo a outra que coloquei entre parêntesis: como é que foi possível, ao longo de mais de 40 anos, manter calma uma situação de conflito latente? Como foi possível uma harmonia entre mundos tão incompossíveis como o árabe muçulmano, o europeu cristão, o emigrante ilegal e o comerciante rico? Como é que os excluídos e os minoritários aguentaram tamanha repugnância e discriminação ao longo de tanto tempo? O que se passa hoje em França era inevitável, se bem que eu seja absolutamente contra qualquer tipo de violência e considere até estúpida a ideia de canalizarem este grito de revolta para actos de destruição dos próprios bairros sociais (se ao menos estes jovens destruíssem Mercedes e BMWs dos bairros chiques do centro de Paris ainda se percebia. Agora, destruírem creches onde provavelmente andam os seus próprios irmãos, carros dos seus vizinhos tão miseráveis quanto eles, fábricas onde trabalham os familiares, é mesmo falta de imaginação e coragem. Afinal de contas, a miséria económica não tem de corresponder a uma miséria de espírito!). Esta situação era tão inevitável que o próprio Prodi já vem dizer que é provável que a situação se repita em Itália por ser o país da Europa com os mais degradados bairros sociais.
Claro que o poder político frisou desde logo que estas manifestações têm interesses diferentes por detrás, tais como os dos traficantes de droga e as redes de criminalidade. Claro que isso é possível, mas não estou a ver os tipos da coca a prepararem os cocktail molotov... (como primeiro snifavam uma linha, começavam logo a tripar e a quererem ir para as creches ou para as fábricas fazer mas é raves e orgias). Sejam quais forem os interesses por detrás destes confrontos, uma coisa é certa: França sempre foi um país de cruzamento de nacionalidades e culturas, aliás, o charme da França deriva mesmo desse facto. Mas esse cruzamento sempre foi acompanhado de um racismo intrínseco, que tem vindo a crescer com o Front National do Le Pen. Sempre que fui a França senti essa violência latente, e até presenciei a falsos alarmes de bombas, a autocarros revistados, a árabes mal vistos e etiquetados na fórmula «j’nique ta mère».
É demasiado fácil dizer que os árabes são naturalmente mais violentos – fácil e perigoso ao mesmo tempo pois é uma ideia xenófoba preconcebida. Não se devem sequer fazer generalizações, pois nesse caso poderíamos dizer que os alemães também são perversos e doentes e amantes das torturas dos campos de concentração. O problema, aqui, é um emaranhado de problemas: desde o terrorismo ao desemprego, passando pela controvérsia da proibição das burkas ou outros objectos de manifestação religiosa dentro das escolas republicanas. Mas então qual foi o ponto de catástrofe? Qual foi a famosa «gota de água»? Foi uma palavra, uma entoação, um acto falhado do Sarkozy: «escumalha». Até faz lembrar, há uns anos, quando a geração jovem portuguesa foi classificada de «rasca». Ninguém se calava com tamanha indignação, até eu participei numa peça de teatro intitulada: «Geração desen-rasca ou deixei de acreditar em Deus desde que fui com a minha avó a Fátima» (sem comentários).
Pergunto: que diferença existe entre «rasca» e «escumalha» ? Respondo: uma diferença enorme, que faz toda a diferença. Primeiro, porque «rasca» foi dito em Portugal, país de brandos costumes, e «escumalha» em França, país das revoluções determinantes do rumo de toda a Europa, país que proclamou a «liberté, fraternité, égalité»; segundo porque «rasca» foi dito acerca de uma geração homogénea de nacionalidade portuguesa, enquanto que a expressão «escumalha» refere um grupo heterogéneo quanto a nacionalidades e religiões e homogéneo quanto a nível social: o mais baixo de todos em França; terceiro porque «rasca» tinha uma conotação mais ou menos educativa, no sentido em que se referia a uma preocupação quanto à falta de ideais e programas de vida da geração mais nova como se de um olhar paternal se tratasse (sim, eu sei, estou a ser demasiado benevolente com esta expressão, mas não menos sarcástica «como se de um olhar materno-castrador se tratasse...), enquanto que «escumalha» é uma expressão de repugnância, de nojo, de superioridade inaceitáveis. O que é certo é que, se Portugal estava de tanga nesse tempo, França está agora de colete de balas e metralhadora na mão, obrigando os seus habitantes ao recolher obrigatório. Nós por cá só somos mesmo bons é em teatro de revista...
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