a escrita é algo de muito bizarro. um dia comecei a escrever um texto sobre o tempo em Proust e passei semanas a fio com insónias e com aquela sensação de desfasamento cronológico que nos surge quando dormimos demais ou de menos. para além disso, perdia-me na observação das pessoas todas à minha volta: a senhora que acompanhava o seu bolo com um chá do outro lado de uma janela, uma bicicleta que passava a toda a velocidade, pisando uma poça e que por milésimas de segundo molhou os sapatos azuis da pessoa que estava à minha frente em vez dos meus, a costura da saia de uma mulher que teimava em desce-la (nota: nunca percebi este comportamento tipicamente feminino, uma espécie de arrependimento na praça pública quanto ao tamanho curto da saia que, afinal, se decidiu usar em frente ao espelho), o sorriso divino de uma menina no baloiço do jardim infantil, enfim, tudo era causa de prolongamento intemporal do tempo, de um entrelaçar ambíguo entre o presente, o passado e o futuro, até porque, no meio dessas observações, muitas vezes se impunham, tão nitidamente quanto as imagens actuais, momentos do passado, fazendo do próprio momento uma realidade quase mais fotográfica do que a antiga.
uma outra vez comecei um artigo sobre o masoquismo em Deleuze e dei por mim a denegar o próprio texto, a não conseguir acabá-lo por uma vontade quase sarcástica de fracassá-lo. e assim foi: nunca o cheguei a acabar, apesar de estar quase, quase terminado. suspendi-o a tempo de nem sequer poder regozijar-me com ele. e agora olho para esse artigo e sinto invariavelmente uma vontade de submissão total como que pedindo envergonhadamente perdão pelo falhanço, pela suspensão da sua realização plena e feliz.
quando escrevi um texto sobre o conceito de acontecimento, delirei por completo! não consegui aceitar a banalidade, a resignação e a comiseração da vida e das pessoas em geral. Mergulhei no Bob Dylan e meti-me no carro sem destino (a gasolina acabou simbolicamente numa rotunda algures por aí...).
entretanto, comecei a ter medo de escrever, medo de ficar presa para sempre a estas situações próprias da escrita. tenho medo, pois sei que ao escrever, me entrego às palavras e entro em devir-texto. não que eu queira ou precise de me sentir autora, subjectividade que domina a escrita. nada disso. simplesmente, ganhei um certo receio em escrever...
ainda pensei dedicar-me a escrever sobre iluminismo e encontrar uma fuga! mas dei por mim a já nem me reconhecer nas ideias tão bem organizadas e sempre universais (o predomínio da razão é algo que consegue ser muito, mas mesmo muito aborrecido). nunca precisei tão absolutamente do contingente, do acaso, do estranho! foi então que deslizei para o romantismo, tentando recuperar o sublime! foi a melhor época da minha vida! sentia cada trovoada como um fluxo directo do coração! viajei até à India em busca de especiarias! Mas logo me fartei do Chopin.
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