Thursday, January 21, 2010

foi mesmo a pura vontade de escrever que me fez vir aqui hoje. escrever por escrever: será possível? escrever sem saber o que escrever, não por demasiadas coisas por dizer, não por contradições filosóficas ou outras que precisem de ser escritas para serem pensadas (pensadas precisamente por serem escritas, porque a escrita tem essa característica: pensa!), também não por um vazio qualquer que tivesse que ser preenchido pelo corpo das palavras, enfim, nada mesmo nada. nada me trouxe até aqui hoje, excepto a vontade de escrever.
é como se a escrita fosse uma energia que percorresse o meu corpo, que o dominasse naturalmente, como o sangue correndo as veias ou o ar enchendo os pulmões. mas precisamente por ser escrita, por ser a experiência mesma da escrita, ela faz-me pensar. desdobro-me então e reflicto-me nas palavras que escrevo sem pensar. incongruência máxima! sei que sou paradoxal e dada a experiências delirantes e no limite do absurdo, mas esta é incrível! ao mesmo tempo que escrevo, vou-me apercebendo do próprio delírio, como uma espécie de déjà-vu experimental que se cria a ele mesmo à la minute: déjà-vu como processo. déjà-vu in progress. uau! estarei eu a entrar na perdição da escrita? será desta? será isto, afinal?
rendo-me: estou completamente feita refém da escrita. viciada, dependente, perdida. precisei de escrever não sei porquê, mas agora sei que preciso de continuar a escrever para perceber tudo o resto que também não sei o que é. como sempre, escrevo de um só fluxo, de rasgão. é a minha norma. escrita a jacto. quando escrevo nunca sei como vai acabar, mas desta vez não sei sequer como começou e o que se está a passar. estou num autêntico limbo.
afasto-me. páro por momentos. levanto-me como que irrigando o meu corpo para lá da escrita! regresso à secretária, qual amante desejando ser possuída. continuo no limbo, continuo a sentir-me perdida e só a escrita produz alguma luz. luz silenciosa, luz ténue, doce e macia, luz inesquecível. a escrita reflecte-me e eu a ela. no fundo é isso: o limbo sou eu. será? estou, não sou?
deambulo entre estas duas percepções de mim: sou e estou. e o pior é que não sei decidir, muito menos perceber o que sou/estou. olho para o teclado, na esperança de que a sua escuridão desperte em mim alguma certeza. olho de frente para as letras, cada uma no seu lugar, como caixinhas perfeitas à espera da minha mão. sinto os dedos, completamente anestesiados pela dúvida instalada em mim, no meu próprio corpo. sim, sou dúvida (por mais que também o esteja).
e de repente, um desconforto cresce entre mim e a escrita. e só me vem à cabeça a expressão «ça me regarde», como esse duplo princípio ético entre mim e as palavras. elas olham-me porque me dizem respeito, e nesse olhar, elas instalam em mim a minha consciência e a minha responsabilidade perante elas. elas fazem de mim alguém, sujeito de consciência e portanto de responsabilidade. quero fugir! quero fugir das palavras! quero fugir de mim! fora!!!!!!!
como sair de mim? como escapar às palavras, agora que as deixei entrar em mim? elas devoram-me! e eu sei que as tenho de comer antes que seja tarde demais! então deixo-as crescer em mim, corpo do meu corpo, para as engolir violentamente! consigo por um momento dominá-las, adequando a minha boca à sua forma e textura sempre diferentes. surgem aos montes, parecendo um algodão doce gigante e vivo, num movimento cavalar que quase não me deixa respirar.
começo a sufocar! perco forças, perco ritmo, não consigo dar vazão a tantas palavras! e elas começam então a dominar-me, a pisar o meu corpo pelo prazer de me subjugar, e eu deixo-me envolver por elas, vindas de todos os lados. são agora elas a boca que devora.
não vou perguntar se até gostaria de ser devorada por palavras! (para além de entrar em campos estrictamente pessoais, isso seria também cair em psicologismos baratos e que não pertencem a esta experiência pura da escrita). fico-me pelo registo desta viagem louca por estes parágrafos que fizeram parte de mim esta tarde. sim, estes parágrafos fizeram hoje parte de mim. estas palavras foram uma parte de mim hoje (estarei eu a chegar a alguma conclusão de estilo cartesiano? - espero que não: tal seria a minha desgraça completa e a vergonha obrigar-me-ía a renunciar a esta experiência). hoje fui palavras (já não é mau... há dias piores... - então agora com a crise...).
não sei que frase fui, mas sei que fui (algumas) palavras.